20110408

(A propósito dos dois risos)

(...)
            A dominação do mundo, como se sabe, é dividida por anjos e demônios. Contudo, o bem do mundo não implica que os anjos levem vantagem sobre os demônios (como eu achava quando era criança), mas que o poder de uns e de outros seja mais ou menos equilibrado. Se existe no mundo muito sentido indiscutível (o poder dos anjos), o homem sucumbe sob o seu peso. Se o mundo perde todo o seu sentido (o reino dos demônios), também não se pode viver.
            As coisas de repente privadas de seu suposto sentido, do lugar que lhes é destinado na ordem esperada das coisas provocam em nós o riso. Em sua origem, o riso pertence portanto ao domínio do diabo. Existe alguma coisa de mau (as coisas de repente se revelam diferentes daquilo que pareciam ser), mas existe nele também uma parte de alívio salutar (as coisas são mais leves do que pareciam, elas nos deixam viver mais livremente, deixam de nos oprimir sob sua austera seriedade).
            Quando o anjo ouviu pela primeira vez o riso do demônio, foi tomado de estupor. Isso se passou num festim, a sala estava cheia de gente e as pessoas foram dominadas umas após as outras pelo riso do diabo, que é horrivelmente contagiante. O anjo compreendeu claramente que esse riso era dirigido contra Deus e contra a dignidade de sua obra. Sabia que tinha de reagir rapidamente, de uma maneira ou de outra, mas sentia-se fraco e sem defesa. Não conseguindo inventar nada, imitou seu adversário. Abrindo a boca, emitiu sons entrecortados, descontínuos, em intervalos acima de seu registro vocal, mas dando-lhe um sentido oposto: Enquanto o riso do diabo mostrava o absurdo das coisas, o anjo, ao contrário, queria alegrar-se por tudo aqui embaixo bem ordenado, sabiamente concebido, bom e cheio de sentido.
            Assim, o anjo e o diabo se enfrentavam e, mostrando a boca aberta, emitiam mais ou menos os mesmos sons, mas cada um se expressava, com seu ruído, coisas absolutamente contrárias. E o diabo olhava o anjo rir, e ria cada vez mais, cada vez melhor e cada vez mais francamente, porque o anjo rindo era infinitamente cômico.  
            Um riso ridículo é um desastre. No entanto, os anjos ainda assim obtiveram um resultado. Eles nos enganaram com uma impostura semântica. Para designar sua imitação do riso e o riso original (do diabo), existe apenas uma palavra. Hoje em dia nem nos damos conta de que a mesma manifestação exterior encobre duas atitudes interiores absolutamente opostas. Existem dois risos e não temos uma palavra para distingui-los.

O Livro do Riso e do Esquecimento, do autor tcheco Milan Kundera. p. 73.

O meu trecho favorito entre as 7 histórias do livro, que fala de Praga, da mémoria e do esquecimento,
de amores, do ridículo e sobre diversos risos... Esse é um para ler, rir, e depois pensar.
Coloquei esse texto aqui porque eu nunca pude definir meus diferentes risos, que de forma sutil são expressões de sentimentos completamente distintos (por vezes até mesmo obscuros). Não era só eu... 

Um comentário:

  1. Que demais Cintia :D
    Achei muito legal a parte em que o diabo ria cada vez mais do anjo, por achar a risada dele engraçada...
    Realmente faz pensar ;)
    Beijos

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