20100925

Sem sair do chão

     Aquela cena, que se repetia, a cada vez mais dramática, a irritava. Naquela noite pareceu que não suportaria mais nenhuma outra. E desolada, já estava chorando as tão previsíveis, e até ensaiadas, lágrimas, quando, então, parou e, sem perceber, improvisou.

     Por instantes sacudiu furiosamente seus braços para cima e para baixo atrás de si. Logo, logo acabou encontrando uma moral para seu ato. Eram a ansiedade e o desespero por dar movimento ao seu mais puro desejo, que até aí lutava para sair da sua falsa subconsciência: O de bater as asas escondidas e alçar vôos, ter sua liberdade.

     Uma mímica tão simples e clara, como um céu azul, mas que só ela podia ver e interpretar. Não havia ninguém presente para adivinhá-la. E, mesmo que tivesse isso não seria possível.

     Resignou-se, e não querendo mais que alguma tristeza escorresse pelo seu rosto, voltou-se para o chuveiro, para o banho insone interrompido. Para que este vertesse sobre si alguns derradeiros minutos de calma e prazerosa solidão. Mas desceram somente relutantes e árduas gotas que em nada poderiam consolar. Pois ele também se magoava e ficava entediado com aquilo. Também o chuveiro havia pensado em chorar. Pelo menos não estava sozinha no seu sofrimento, as coisas tinham empatia por ela.

Ficou, enfim, com o dilema de seu pássaro interior...

     Como voar com suas asas cortadas, ou que talvez nunca existissem, tendo suprimentos ao alcance somente em sua gaiola, que a prende no nada? E o que mantinha seu instinto e sua resistência a existir simplesmente naquelas circunstâncias?

    Ah, sim, são frestas que a fazem enxergar um pouco do mundo lá fora. E deixam escancarado um abundante ar livre para inflar-lhe a alma. Ao se lembrar das possibilidades que iam se inventando ao longo de seus dias, acaba tentando submeter-se a uma paciência e esperança, desconhecidas, para a regeneração de si mesma.

     Sente uma necessidade louca de fugir, para bem longe, onde nem o céu seja limite. Ir além. E para sobreviver, precisa desenhar um horizonte, enxergar uma linha para ultrapassar e saber que depois dessa, outra pode surgir, sempre. Quer entregar-se ao vento que lhe ronda louco, o que faz viver valer a pena, mas deve olhar por onde ele a leva, para todos os lados, principalmente para frente.

     E assim ela alçaria seu voo imaginário. Não tão livre assim, afinal liberdade não tem começo, nem fim, nem horizonte... Apenas se busca ou inventa. Voaria, então, sem sair do chão.

pseudo: J. Prèvert

Um comentário:

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